O Cristo que dorme, na gaveta do altar,
de espinhos vermelhos na cabeça e
feridas roxas nas mãos, tem os olhos
fechados. Desceu-lhe as pálpebras
a mão de Madalena, a loura prostituta
que ele roubou aos homens; limpou-lhe
o sangue o lenço de Verónica, a bela
compadecida que guardou o linho onde
o seu rosto permanece; cruzou-lhe as
mãos a Mãe, ouvindo na ira dos ventos
a voz divina. Que durma em paz, esse
Cristo roubado à cruz, na gaveta do
Altar aonde não chegam já as vozes do
homem. Adormecido, que nem um grito
de dor o desperte; nem um gemido
suplicante o distraia do seu sono; nem
a fúria das gerações lhe reabra as
feridas. Um a um, têm caído os espinhos;
pouco a pouco, o sangue confunde-se
com a cor da pele; e no seu rosto uma
antiga palidez recupera a vida. Até
que alguém reabra a gaveta, na véspera
de Páscoa, e o traga de volta a este
mundo: cravando mais fundo ainda
nas mãos e no pés, os pregos, no peito,
o bico da lança, e na cabeça, os espinhos.
Nuno Júdice